A dona Maria é uma senhora de idade que vive nas zonas antigas de Lisboa. Até há uns anos podia queixar-se do estado do prédio onde vivia mas a câmara Municipal tratou do problema num dos seus programas de restauro das zonas velhas. Toda a vida trabalhou como empregada doméstica em casas mais abastadas e por todas as onde passou trouxe qualquer coisa com ela. Não apenas uma experiência e conhecimentos mas malícia. Perdeu a conta às camas por onde passou, não por afecto ou prazer mas por interesse. Os patrões ofereciam bónus salariais e presentes e dona Maria sempre se deixou deslumbrar e subornar pelas ofertas. Tal como a maioria das pessoas nascidas no seu tempo dona Maria foi educada como católica e sempre demonstrou grande fé pessoal na sua religião. Ia à missa pelo menos uma vez por semana, confessava-se regularmente (se diria mesmo tudo o que se cometeu nas casas por onde passou ou não é um mistério que só o seu confessor poderia revelar), rezava assiduamente em casa e sempre fez alarido público da sua devoção quer para amigos quer para vizinhos.
A velhice chegou e dona Maria acabou por se reformar e foi viver para a casa que mais tarde seria restaurada. Tal como a maioria das pessoas da sua idade a sua reforma é baixa, muito baixa; mal dando para ela viver com um mínimo de conforto que qualquer pessoa de idade merece ter nos seus últimos anos. Para melhorar esta situação dona Maria alugou quartos da sua casa a estudantes de fora de Lisboa. Ao receber este poder sobre a vida de outras pessoas dona Maria voltou aos seus hábitos. Sempre tentou extorquir de forma mais completa possível dinheiro aos estudantes que por sua casa foram passando (não estando acima de recorrer a ameaças físicas e espirituais para expulsar hóspedes que não colaborassem). Uns pagaram peças de mobiliário que não tinham estragado, outros rendas adiantadas para evitar que a senhora tivesse uma atitude agressiva, alguns menos afortunados foram mesmo trancados fora de casa sem aviso prévio por não colaborarem nestas situações.
Eventualmente dona Maria faleceu. Piamente convencida que o céu lhe estava destinado. A sua fé era forte e a sua prática impecável ao público. A sua filha despachou o funeral o mais cedo que pode e o mais barato que conseguiu já que não guardava grande afecto por uma mãe que a tinha abandonado na casa de uns tios assim que nascera. A vida de todos continuou.
Pessoalmente não posso deixar de ter pena por dona Maria – além de sentir a dor de todos os que ela aleijou de forma consciente e intencional. Presa a uma fé de fetiches em que cruzes e poses públicas passam por verdadeiro conhecimento divino viveu a sua vida de forma miserável, eternamente atrás da vantagem imediata, prejudicando outros que no fundo são seus irmãos e prejudicando-se a ela mesma ao não aceitar a obrigação de se conhecer a si mesma e o amor espiritual que tanto publicitava aos outros. Dona Maria não aprendeu o que deveria ter aprendido e por muito fiel que tenha sido aos rituais a verdadeira Vida passou-lhe ao lado.
2 comentários:
Bom dia Templo :) Trata-se duma historia verdadeira ou Dona Maria é algo como uma figura arquetipica ?
Olá wolkengedanken :)
Curiosamente, apesar das aparências, a dona Maria era uma pessoal real que conheci através de amigos que estiveram nas suas "garras". Mas dá um exemplo perfeito não dá?
Enviar um comentário